
À Comunidade,
No dia Internacional da Mulher, trazemos a entrevista realizada pelo A TARDE com a física Suani Tavares Rubim de Pinho, professora titular do Instituto de Física da UFBA, chefe de gabinete da Reitoria e uma das autoras do artigo Modelos matemáticos da Covid-19 para 14,8 milhões de indivíduos – Bahia, Brasil, publicado recentemente na revista britânica Nature. A atuação da professora, contribui para ressaltar o gradual avanço feminino em setores ainda dominados por cientistas homens, veja a seguir a entrevista realizada por Gilson Jorge:
"A maioria dos mortais no Brasil não consegue ir muito além das quatro operações básicas da matemática. Como definir de maneira simples o que é esse modelo matemático relacionado à Covid-19 e à população da Bahia e por que ele é importante?"
"A matemática, além de muito bela, tem grande aplicabilidade nas nossas vidas, não apenas contando com as quatro operações, mas podendo ir muito além. Antes de contar o que nosso modelo matemático faz e para que serve, queria tentar explicar, de forma mais geral, o quão ubíquos os modelos matemáticos podem ser, aplicando-se a diferentes cenários reais ou hipotéticos.
Pensando num sistema bem simples, se quisermos saber como o número de indivíduos de uma dada população varia à medida que o tempo passa, temos que entender quais fatores influenciam seu aumento ou redução, como a natalidade e a mortalidade, e os recursos disponíveis para alimentar tal população. Podemos representar tudo isso através de uma equação e estimar em que condições a população se estabiliza no tempo, de modo a permitir sua existência. De forma análoga, no nosso modelo matemático precisamos estabelecer cenários de ganho dos leitos hospitalares disponíveis, sejam eles clínicos ou de UTI, e da redução de infectados e mortes pela Covid-19, considerando as estratégias de distanciamento social. Neste exemplo, temos muito mais equações do que no exemplo anterior, estando elas relacionadas. Nisto está toda a riqueza do modelo.
Para estabelecer os cenários, por se tratar de um modelo mais complexo, precisamos fazer cálculos com uso do computador e nos basear em dados reais de modo que tais previsões façam sentido. Mas será que podemos confiar nesses dados? E as subnotificações? E os indivíduos assintomáticos? Esta é outra vantagem da modelagem matemática. Como não temos como contabilizar os indivíduos assintomáticos, no modelo podemos introduzir uma grandeza que os representa e simular cenários estimando o efeito da sua presença tanto no curso da epidemia quanto na disponibilidade dos leitos. E foi justamente o que fizemos, baseado em estudos que mostram que a quantidade de assintomáticos pode ser expressiva nas epidemias de Covid-19."
"É possível dar um exemplo? "
"Para exemplificar o tipo de alerta que os modelos matemáticos podem dar, fizemos um teste para mostrar que o aumento da circulação dos indivíduos assintomáticos afetava de forma expressiva a disponibilidade de leitos hospitalares, visto que sua transmissão provoca mais indivíduos sintomáticos que, por sua vez, precisam de mais leitos. Como este processo tem um caráter não linear, uma pequena flexibilização das medidas restritivas sobre indivíduos com menos chance de apresentar sintomas pode produzir efeitos amplificados sobre o sistema de saúde."
"Houve a preocupação de incorporar o contexto da Bahia na pandemia. O que isso significa e como mensurar matematicamente?"
"Sim, e isto se deu por diversas razões. Na verdade, nosso modelo pode ser aplicado a qualquer cidade ou estado, desde que tenhamos acesso aos dados necessários para alimentar o modelo, ressaltando sua ubiquidade. No caso da Bahia, alguns fatores nos favoreceram: inicialmente, tivemos um diálogo profícuo com a equipe do Hospital Couto Maia que nos possibilitou estimar os parâmetros associados aos leitos hospitalares; nossa equipe de modelagem matemática da Rede CoVida pode dialogar com instâncias governamentais. Desse diálogo, podemos contribuir com análises mais sofisticadas, baseadas em medidas que levam em conta o papel dos assintomáticos, o que certamente os governantes não poderiam obter apenas baseados nos dados."
"Estamos diante de uma nova cepa, mais contagiosa e agressiva. Chegamos a 137 mortes registradas em um dia na Bahia contra uma média de 30 mortes diárias no fim do ano passado. No que o método ajuda neste novo momento?"
"Vivemos uma grande tragédia. Certamente, o pior momento da pandemia da Covid-19 na Bahia e no Brasil. Infelizmente, não houve uma orientação do governo em nível nacional em prol da vida. O vírus encontrou um terreno fértil que levou ao surgimento de uma variante brasileira altamente transmissível. Nosso método e modelo pode também ser aplicado à segunda onda da pandemia na Bahia e no Brasil. Como já atingimos quase a totalidade dos leitos hospitalares disponíveis para a Covid-19, as perguntas devem ser feitas no sentido contrário, como também o fizemos no nosso artigo: qual é o efeito do “lockdown” e como ele deveria ser aplicado no decorrer do tempo? Quantos leitos hospitalares são necessários para atender à demanda, considerando medidas mais restritivas ou menos restritivas? Nosso trabalho ressalta a relevância das medidas de distanciamento social, que são necessárias ainda que as vacinas produzam bons resultados. Recentemente, fiquei chocada quando vi uma publicação em rede social feita por profissional da área de saúde que insinuava não haver evidência de que “ficar em casa” causaria efeito na pandemia. Gostaria muito que ele lesse nosso artigo."
"A publicação do artigo na Nature abriu canais de diálogo com as autoridades sobre o uso do método? "
"Diria que o diálogo com as autoridades foi aberto quando da concepção e elaboração do trabalho que culminou na publicação do artigo na Nature Communications. Neste sentido, o papel do Centro de Integração de Dados e Conhecimento para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia) foi central, seja na comunicação da produção da Rede CoVida através dos seus boletins em que nossos resultados começavam a ser publicados, seja na abertura de canais de comunicação com as instâncias governamentais. Vale ressaltar que aplicamos uma versão mais simplificada do modelo para os demais estados brasileiros sem os compartimentos associados aos indivíduos hospitalizados, justamente porque não temos os dados para estimar os parâmetros associados aos leitos hospitalares; tendo tais informações, o modelo completo pode ser aplicado inclusive à segunda onda da pandemia."
"É possível prever cenários matemáticos para a pandemia na Bahia nos próximos meses, com e sem vacinação em massa? Em uma situação ótima de vacinação, quando poderíamos dizer que a Covid deixaria de ser pandêmica?"
"Sim, porém utilizando uma versão mais complexa do nosso modelo, com o qual estamos trabalhando. Faz-se necessário considerar uma estrutura etária nas grandezas do modelo. Enquanto o modelo apresentado no artigo é formado por oito equações, considerando apenas dois grupos etários, abaixo e acima de 60 anos, passaríamos a ter 16 equações. Assim, introduzindo a vacina nesse modelo mais complexo, é, sim, possível responder à questão que se apresenta, ao menos com respeito ao Sars-Cov-2. Utilizando a mesma metodologia, podemos apresentar cenários da situação ótima de vacinação em que o chamado número de reprodutibilidade do modelo deve permanecer abaixo da unidade, indicando que, em média, cada infectado gera menos de um infectado; esta é a forma de garantir matematicamente que o processo deixou de ser epidêmico. Aqui vemos outra vantagem dos modelos: a possibilidade de modificá-los, tornando-os mais complexos a fim de responder perguntas mais complicadas."
"E a mulher baiana na ciência, como anda? Há campos específicos em que a presença feminina esteja maior? Ainda há redutos masculinos?"
"Enquanto áreas associadas ao cuidar, nos âmbitos das ciências da saúde, biológicas e humanas, apresentam predominância feminina, é fato que nas áreas de ciências exatas e tecnologias tal participação é ainda bastante reduzida em todo o mundo, não sendo diferente no Brasil e, em particular, na Bahia. Há diversas iniciativas no sentido de ampliá-la, atraindo mais estudantes e estabelecendo mecanismos para que sigam a carreira científica. Muitas desistem no caminho, seja pela dificuldade em compatibilizar a família com a carreira científica, que exige muita dedicação e mobilidade, seja pela competitividade, usualmente associada ao perfil masculino, ou ainda por outros fatores. Observa-se também que, quanto maior a senioridade, menor a presença feminina.
Diversas ações afirmativas podem auxiliar na reversão desse quadro. Dentre elas, na Bahia, podemos citar a iniciativa Prêmio Bahia pela Diversidade para Mulheres Cientistas Sênior nas áreas de Ciências Exatas e Ciências Biológica sem 2017, e o aumento de ingresso de mulheres cientistas na Academia de Ciências da Bahia, como ocorreu em 2018.
Por fim, diria que a diversidade é importante nas diversas atividades humanas, em particular na ciência, agregando visões complementares; desde a visão multidisciplinar das áreas de conhecimento, como apresentamos acima, até a diversidade de gênero, trazendo consigo abordagens distintas."
Para acessar o artigo na Revista Nature use o link: https://www.nature.com/articles/s41467-020-19798-3
Para saber um pouco mais sobre o artigo, acesse o Edgar Digital: http://www.edgardigital.ufba.br/?p=19236
Fonte: Revista Muito - Portal ATARDE
Foto: Raphael Muller